Um dos mais destacados papéis do investimento social privado é servir de laboratório para projetos que tenham potencial de serem adotados por governos. “A consciência de corresponsabilidade pelo desenvolvimento tem levado a um número crescente de políticas públicas baseadas em experiências bem-sucedidas de organizações sociais, empresas, institutos e fundações privadas”, afirmam Helena Monteiro, Marcos Kisil e Márcia Kalvon Woods no livro “Tendências do investimento social privado na América Latina”, coeditado pelo IDIS. “Quando um projeto se transforma em política pública, ganha maior abrangência e, além de beneficiar mais pessoas, ajuda a disseminar ações de sucesso”, acrescentam os autores.
O Observatório de Favelas, do Rio de Janeiro, surgiu exatamente para desenvolver programas com possibilidade de aplicação ampla. Como diz a coordenadora de educação da entidade, Patrícia Santos, “um dos grandes objetivos é criar metodologias que fomentem políticas públicas”.
É o caso, por exemplo, do projeto Rede Universitários de Espaços Populares (Ruep), elaborado em 2003. A iniciativa era um programa de extensão voltado para estudantes do ensino superior oriundos de favelas e regiões periféricas, aproximando universidade e comunidades populares.
O Ruep começou na favela da Maré, sede do Observatório. Pouco depois de o Ministério da Educação criar a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), surgiu a oportunidade de uma parceria. O programa foi então renomeado, no final de 2004, como Conexões de Saberes, e passou a ser aplicado em cinco universidades federais: a Fluminense, a do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de Pernambuco e do Pará.
Apesar de ter sido encampado pelo poder público, o programa continuou sendo acompanhado pelo Observatório. “Nós fazíamos o monitoramento do Conexões junto à Secadi, e havia uma coordenação composta pelo governo, por nós e por professores universitários”, afirma Patrícia.
A coordenadora de educação, no entanto, considera que foi apenas em 2008 que o programa tornou-se de fato uma política pública: “Até 2007, a adesão das universidades ocorria depois de um convite, mas, no ano seguinte, é publicado o primeiro edital do Conexões de Saberes”. Foi também em 2008 que o projeto fez uma parceria com a Secretaria de Educação Superior (Sesu), juntando-se ao Programa de Educação Tutorial (PET), que incentiva a extensão universitária, oferecendo, inclusive, bolsas aos participantes. O PET Conexões é voltado exclusivamente para alunos de baixa condição socioeconômica.
A partir de 2009, diz Patrícia, o Observatório se afastou do Conexões, na medida em que o governo federal o assume de vez como política pública. “Isso é natural, pois existem outras questões com as quais o Observatório tem de lidar e, além disso, há a autonomia universitária. Portanto, era lógico o afastamento.”
Outra ponta
A educação também foi o foco de um projeto do Instituto Ayrton Senna que se tornou política pública. Ao contrário do Conexões de Saberes – que trabalha com universitários –, o Acelera Brasil é voltado a estudantes do ensino fundamental – especificamente, aos que estudam numa série inadequada para a idade que têm.
“Um dos grandes problemas da rede pública é a distorção idade-série, que se torna um entrave para uma educação de qualidade”, diz a coordenadora de projetos do Instituto, Inês Miskalo, explicando a criação, em 1997, do primeiro programa em grande escala da organização. O objetivo é que, em um ano, o aluno com no mínimo dois anos de distorção cumpra todo o conteúdo das séries em defasagem, colocando-o de novo no período correto.
O próprio objetivo do projeto requer um trabalho muito próximo com o poder público. “É importante que os secretários de educação e a gestão pública se comprometam com algumas coisas, como o fornecimento de salas de aula e o comprometimento dos professores – até porque o programa não é do Instituto, mas da rede de ensino”, afirma Inês.
O Acelera Brasil começou em 15 municípios das cinco regiões do País. Já em 1998, os bons resultados do Acelera chamaram a atenção de outros municípios, que buscaram o Instituto. Em 1999, o governo de Goiás procurou a organização para aplicar o programa em toda a rede pública do estado. As administrações do Ceará, do Mato Grosso do Sul, de Pernambuco, do Piauí, do Rio Grande do Sul e do Sergipe igualmente adotaram o Acelera.
As relações entre o Instituto e as redes de ensino variam muito. Em Goiás, o governo estadual comprou o material didático, mas a metodologia e a formação foram fornecidas gratuitamente pela ONG (que tem seu orçamento financiado pela venda de produtos com a marca Ayrton Senna ou por doação de terceiros). Em outros casos, grandes empresas procuram o Instituto para bancar integralmente o Acelera em algum município.
A maior flexibilidade de um ente privado ajuda no funcionamento do programa, avalia Inês, pois é fundamental cumprir 160 dias de aula por ano para que o Acelera funcione, e isso, por vezes, esbarra em barreiras burocráticas que o Instituto consegue vencer. “Você vai fazer uma compra, por exemplo, de material didático e precisa ser via licitação, mas pode haver alguma demora nesse processo, comprometendo o programa. Então há a possibilidade de o Instituto fazer a compra”, declara.
Também ao contrário do que ocorreu com o Conexões de Saberes, a adoção como política pública não afasta o Instituto Ayrton Senna do Acelera Brasil – até porque um dos pilares do projeto é exatamente um sistema de dados mantido pela organização e alimentado pelos gestores públicos.
Outra diferença entre ambos é que, por lidar com um número muito maior de gestores públicos, o Instituto tem problemas de descontinuidade em alguns lugares. “No Brasil, ainda temos uma visão de política partidária, e não cidadã, e a troca de governos é um obstáculo por vezes intransponível”, constata Inês. No entanto, ela vê com otimismo o fato de o Acelera continuar mesmo em alguns casos nos quais a oposição assumiu o poder.