É inegável que os governos têm de dar parâmetros e traçar linhas de atuação do terceiro setor, mas sua ação pode ter resultados nocivos se criar regras muito rígidas – ainda que bem intencionadas –, estrangulando as iniciativas das organizações da sociedade civil (OSCs). A conclusão é do estudo “Building trust in charitable giving”, lançado mundialmente nesta semana.
O estudo é parte do projeto “Future world giving”, da organização britânica Charities Aid Foundation (CAF), no Brasil representada pelo IDIS, e busca fazer recomendações para garantir a expansão da atuação filantrópica. Além deste, serão publicados mais dois levantamentos: um sobre apoio à sociedade civil e outro sobre motivação para doação.
O primeiro texto da série alerta que alguns governos acreditam ser tarefa deles construir a confiança do terceiro setor – e, a partir dessa crença “equivocada”, criam sistemas regulatórios que demandam registros e prestações de conta em excesso com objetivo de garantir padrões mínimos de confiabilidade. “Isso é contraproducente”, afirma o estudo. “Ainda que os governos tenham o dever de assegurar que as organizações sem fins lucrativos sejam transparentes e prestem contas, não têm de ser os guardiões da sociedade civil”, acrescenta. “A confiança não é construída, é conquistada.”
Em países em que os cidadãos não confiam no poder público, quanto mais o governo controla a relação entre as organizações sem fins lucrativos e a sociedade civil, mais esta vê com maus olhos o processo e as próprias entidades.
Mas mesmo nos países em que as pessoas confiam nos governantes a intervenção pode ter consequências ruins. Tende-se acreditar que a regulação garanta a atuação adequada das entidades. “O efeito é que se torna impossível para as organizações da sociedade civil conquistar confiança. Assim, o sistema se fragiliza: exemplos isolados de má atuação resultam em crise de confiança que afeta o setor como um todo”, argumenta o texto.
Além disso, em países em desenvolvimento, a regulação de organizações da sociedade civil com base em padrões internacionais pode prejudicar estruturas informais de solidariedade já muito enraizadas nas comunidades. Para o estudo, o poder público deveria, nesses casos, ajudar a fortalecer os modelos tradicionais, que já contam com a confiança dos cidadãos, para fortalecer o investimento social privado.
Recomendações
Como o poder público deve atuar, então? O estudo faz recomendações em quatro temas. Em cada um, há três níveis de medidas – o primeiro deveria ser implementado por todos os países, o último refere-se a objetivos de mais longo prazo.
Registro: é importante para que os governos compreendam melhor o tamanho e a ação da sociedade civil. Além disso, as OSCs se tornam mais confiáveis aos olhos do público quando passam por algum tipo de registro. O processo, porém, não pode ser tão complicado a ponto de desencorajar organizações menores. Além disso, convém que o governo ofereça treinamentos e serviços online para que possíveis criadores de entidade saibam como registrá-la e quais benefícios teria com isso. Por fim, o relatório recomenda que haja níveis de registros diversos para organizações com tamanhos diferentes – e as exigências devem aumentar na mesma medida em que crescem as entidades.
Regulação: diz respeito diretamente à gestão e à accountability das OSCs. A recomendação básica, aqui, é que sejam exigidos relatórios periódicos na medida da capacidade e da habilidade de cada organização. Uma boa ideia pode ser a existência de protocolos diferenciados para pequenas organizações comunitárias. Como recomendação de longo prazo, sugere-se criar um banco de dados, acessado por todas as entidades reguladoras, de modo que as OSCs não tenham de se reportar para diversos organismos governamentais.
Atribuição de status: trata dos tipos formais de organizações sem fins lucrativos. Formas tradicionais de associações sem fins lucrativos da sociedade civil local devem ser legalmente reconhecidas, por meio de uma regulação simples. A sugestão de longo prazo é que se aloquem recursos para que organizações que trabalhem com o desenvolvimento da infraestrutura do setor filantrópico possam auxiliar as OSCs a se adequarem às normas regulatórias.
Regulação de organizações estrangeiras ou financiadas por capital externo: entidades nacionais devem ter liberdade de associar a parceiros estrangeiros. Devem, também, relatar ao poder público os benefícios dessa associação para o desenvolvimento da sociedade civil. Por fim, sugere-se que os governos permitam análises independentes de seus gastos com ajuda internacional.
Brasil
Segundo uma pesquisa de opinião citada no estudo da CAF (Edelman’s Trust Barometer), as organizações sem fins lucrativos são as instituições consideradas mais confiáveis pelos entrevistados (63% disseram confiar nelas). Em países com problemas de corrupção, no entanto, esse índice tende a cair, sobretudo quando OSCs estão envolvidas em escândalos. E a pesquisa da CAF usa um exemplo muito familiar para nós: o Brasil.
Os escândalos envolvendo as parcerias entre o setor público e organizações da sociedade civil afetaram a confiança geral no setor filantrópico, avalia o texto. Não por acaso, as OSCs brasileiras estão apenas em terceiro lugar na pesquisa local da Edelman, atrás da mídia e das empresas. Mais ainda, outra pesquisa da CAF, o World Giving Index, aponta que, desde 2007, a proporção de pessoas doando para OSCs caiu cinco pontos percentuais no país.
A publicação traz, inclusive, uma declaração de Paula Fabiani, diretora-executiva do IDIS, parceiro da CAF. “Nós gostaríamos que o governo falasse de maneira mais positiva sobre as entidades sem fins lucrativos e melhorasse a regulação, ao mesmo tempo em que trabalhasse com as organizações para melhorar sua governança”, disse Paula.
Leia o estudo na íntegra neste link:https://www.cafonline.org/PDF/Future-World-Giving.pdf.