O jornal quinzenal “The Chronicle of Philantropy” faz, todo ano, uma lista das maiores doações feitas publicamente por norte-americanos. Considerando apenas as maiores de 1 milhão de dólares, foram doados U$ 9,6 bilhões em 2013. No Brasil esses números são desconhecidos – aqui, não se sabe quanto, ou mesmo se, os detentores de grande fortuna doam a causas sociais. Para entender essa realidade, o IDIS convidou quatro especialistas para comentar. Entre os pontos em comum observados, eles indicam a necessidade de criar uma cultura de doação (ainda incipiente no Brasil, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos) e a importância de falar publicamente sobre doações para inspirar outras pessoas.
Alguns apontaram, no silêncio dos milionários brasileiros, razões de segurança; outros veem um problema mais de fundo, a desigualdade social, que faria a elite viver em uma redoma e, por isso, não ter senso coletivo.
Veja abaixo os principais trechos das respostas.
Joana Mortari, diretora da Associação Acorde:
“Nos Estados Unidos, declarar a doação é algo positivo e valorizado. As pessoas doam para inspirar e também para serem reconhecidas e admiradas. No Brasil, a admiração está apenas no ganhar, e não no doar. Os valores são diferentes.”
“Muitos aqui dizem que o problema é a falta de incentivo fiscal para doação. Mas, se doar fosse um valor e gerasse reconhecimento social (status), as pessoas tirariam do caixa e não ficariam esperando um dinheiro de renúncia fiscal para doar – dinheiro que, aliás, é considerado para muitos como do governo, já que o poder público está abrindo mão de um recolhimento. Incentivo ajuda, mas a falta dele não é o centro do problema.”
“O norte-americano tem um sentimento de construção coletiva da nação, de corresponsabilidade com o governo na construção do país. Já no Brasil nós delegamos ao governo e ponto. Assim, há uma sensação coletiva de que se pagamos os impostos, fizemos nossa parte. Nesse contexto, declarar grandes doações inspira mais críticas do que seguidores. Acrescente a isso que existe um problema de segurança, e pronto: não há nenhum bom motivo mesmo para declarar doações.”
“Precisamos mudar esse sistema de valores ao fomentar a cultura de doação. Quando doar for motivo de orgulho e reconhecimento social, fazer o ranking será o mais fácil.”
Paula Fabiani, diretora-executiva do IDIS:
“Temos poucos dados nessa área. Estudos como o Censo e a Pesquisa de Orçamento Familiar, ambos do IBGE, não abordam de forma direta a questão da doação no país. Os bancos tampouco mapeiam os valores relativos à doação de seus clientes de alto poder aquisitivo. E as informações das declarações de Imposto de Renda também não nos fornecem um bom panorama, pois há poucas possibilidades de utilização de incentivo fiscal (o que não estimula o doador a declarar a doação), a declaração de Imposto de Renda simplificada não permite informar a doação, e o universo de declarações completa se restringe a algo em torno de 10 milhões de brasileiros.”
“Faltam motivadores para a declaração da doação, pois o governo não realiza campanhas nem dá suporte para incentivar esse tipo de atitude.”
“Existem evidências para se pensar que o investidor social privado é relutante em expor os valores de doação. Uma razão importante é o fato de as doações ocorrerem via empresa, para a qual há incentivos fiscais mais abrangentes. Outro motivo reportado por alguns é a questão da segurança. Além disso, a exposição gera um aumento no volume de solicitações de doações.”
“Não existem estudos que demonstram um panorama das grandes doações individuais, como ocorre nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. A inexistência dessa informação dificulta a identificação do tamanho do setor filantrópico e sua evolução ao longo dos anos, assim como a própria ação das organizações da sociedade civil na captação de recursos.”
“Em 2013, assistimos à maior doação individual do ano nos Estados Unidos, e de um indivíduo com menos de 30 anos: Mark Zuckerberg, cofundador do Facebook doou US$ 1 bilhão para a Silicon Valley Community Foundation. Não temos informações dessa natureza para inspirar nossos investidores sociais no Brasil.”
“Os filantropos brasileiros precisam se sentir parte de uma comunidade e, para isso, precisam de informações sobre essa comunidade. É imperativo realizar um mapeamento periódico que permita ao setor e ao governo buscar políticas públicas mais favoráveis e acompanhar o impacto destas no desenvolvimento do setor filantrópico no país.”
Marcos Flávio Azzi, fundador do Instituto Azzi
“O topo de tudo é a falta de senso coletivo, a vida ‘guetizada’ que as pessoas vivem. Pode-se tranquilamente viver num oásis de primeiro mundo, completamente isolado do Brasil como um todo. Disso, derivam todos os problemas.”
“O senso coletivo da classe baixa é maior. Ela vive a realidade, usa os instrumentos públicos, o hospital, a escola, o transporte coletivo, o parque.”
“Aqui, a pessoa não é elogiada por fazer doação nem recriminada por não fazer, e isso já abre um abismo entre a gente e os norte-americanos”
“Ter comportamento altruísta é doar uma parcela relevante do patrimônio, de forma recorrente, com um objetivo específico e impessoal, sem esperar algum tipo de benefício. Aqui, as pessoas de alto poder aquisitivo fazem exatamente o oposto: a doação é esporádica, não é recorrente, é irrelevante em relação ao patrimônio e, geralmente, visando algum benefício – porque um amigo pediu ou tem algum incentivo fiscal”.
“Mais importante do que ter incentivos fiscais é ter desincentivos para não doar. Nos Estados Unidos, as heranças são taxadas em 50%, enquanto em São Paulo são só 4%. Os norte-americanos não doam porque há incentivos, mas sim porque ser filantropo vem de berço – isso é que forçou a criação dos incentivos”.
“Para melhorar a situação do investimento social privado no Brasil, é preciso aproximar cada vez mais a classe alta do coletivo, usando instrumentos que tornem o coletivo mais presente; o incentivo fiscal é importante, claro, mas tem de fazer umas 20 coisas para reverter a situação atual”.
Anna Maria Peliano, pesquisadora do Ipea, coordenadora do estudo “Benchmark do investimento social corporativo”
“Há pesquisas sobre empresas, mas não para doações individuais, ainda que o investimento social privado de negócios familiares tenha a ver com as opiniões dos donos. A situação lembra a da filantropia corporativa de duas décadas atrás. O investimento social corporativo na década de 90 também não era divulgado, não se valorizava falar sobre isso”.
“O brasileiro não tem tradição de divulgar doações, diferentemente dos Estados Unidos. É importante falar sobre investimento social privado, principalmente os grandes doadores. Isso estimula os outros a fazerem o mesmo e cria uma cultura de doação”.
“Para melhorar o ambiente do investimento social privado no Brasil, é preciso estruturar, organizar, divulgar. A sociedade começa a valorizar, a ver que não é só promoção individual. Deve-se trazer exemplos, estruturas, práticas.”